Poesia e Resistência: Caminho de Cora Coralina

– Senhor! … Como a roça cheira bem!

Cora Coralina, Poema do Milho

Completei três dos 13 trechos do Caminho de Cora Coralina, uma travessia de longo curso de 300 quilômetros de extensão que corta cidades histórias de Goiás (GO). De tanto em tanto, quando a agenda permite, lá estou eu caminhando com o grupo Calango & Caliandras por estradas vicinais e por caminhos de fazendas no interior das propriedades privadas conveniadas com a secretaria de Turismo, por intermédio da Associação Caminho de Cora Coralina (ACCC).

Desde que decidi pelo desafio, em 2022, acoplei a ele a aventura de ler e, algumas vezes, reler, a obra da poetisa Cora Coralina. Comecei pela literatura infantil, que pouco conhecia. Já se foram: Os meninos verdes (linda história sobre a aceitação do diferente), De medos e assombrações (“causos” do interior de arrepiar) e Poema do milho, dedicado a louvar o trabalho do homem e da mulher do campo durante a semeadura e a colheita do milho em terras goianas. 

Andar pelos caminhos da roça faz a gente experimentar cheiros muito distantes da nossa cotidiana vida urbana. Cheiro da manhã nascendo (afinal, pomos o pé no Caminho bem cedo para aliviar o calorão depois do meio-dia), cheiros de animais (vacas, bois e cavalos), cheiros de plantas, frutas e floração. Andar pelo Caminho também faz a gente ouvir o silêncio, os pássaros, o mugido, o roçar da calças e a ponteira do bastão batendo no chão a cada passo.

Além, é claro das conversas animadas dos/as colegas do Grupo que estão à frente ou atrás de você. E, por vezes, os latidos dos “doguinhos” que acompanham os caminhantes pelas trilhas. Uns acabam adotados, outros são levados de volta à sua cidade de origem dentro do ônibus que nos transporta de Brasília (DF) a cada uma das cidades de partida ou de chegada dos trechos de Cora. Não podiam faltar o som das motocicletas a circular com leite e com pessoas entre os povoados, o som dos tratores e o dos poucos carros.

Este final de semana (fevereiro 2023), estive a admirar como é bonito o Passaporte do Peregrino! Já tenho lá meus carimbos, e o último foi de São Benedito, distrito de Itaberaí (GO). Os carimbos são dados aos caminhantes por comerciantes locais. Já recebi o meu em mercearia, restaurante, parque turístico e o último foi na estalagem Pouso Vitória, onde pousei para banho depois de 27 km a pé desde Itaguari. Quando concluir todos os trechos, vou receber um certificado como meus colegas e tantos outros que fizeram o Caminho a pé ou de bike! 

Revitalização com bancos para descanso e imersão na poesia de Cora Coralina são as benfeitorias realizadas no último ano pela ACCC.

Trecho 1 Estrofe Cora Coralina

Ao longo do Caminho – e são longos, entre 16 e 38 km – a gente senta e descansa um pouco lendo estrofes de Cora.

Uma delas, remete a esse ir e vir e o encontro com a poesia.

Irmanadas na poesia

nos encontramos:

Quem vem vindo.

Quem vai indo.

Na roda-vida da vida

girando se esbaldando

no encalço de uma rima

fugidia

De poético, a ruralidade do interior de Goiás está repleta. Logo pela manhã, ao nascer do sol, a alma do caminhante pode se reportar ao bucólico, à poesia pastoril de outros tempos, que valorizava a vida simples do campo em detrimento da vida agitada das cidades que começavam a florescer. A paisagem do Caminho, no entanto, é paradoxal. Na estrada, contemplam-se pequenos proprietários rurais, médios pecuaristas com criação extensiva de gado e as grandes propriedades em que soja e milho estão a perder de vista. No negócio, a vista vê longe um troço de mata virgem e sabe que é a reserva legal obrigatória, o pouco do Cerrado que ainda vive.

Quando caminhamos, passar rente a esses troços de mata é revigorante. A brisa refresca o corpo e diminui a suadeira, a sombra remete à esperança e o desenho não-linear das folhas e das árvores oxigena os olhos e o pulmão, em contraste à paisagem ao longe de um verde de mesmo tom e a saliência de um pivô de irrigação ao meio da plantação.

Ainda não cheguei aos trechos de serra e, por isso, novas aventuras se avizinham no caminhar e na leitura das obras de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, mais conhecida como Cora Coralina!

Cora sempre escreveu, mas só foi publicar seus textos depois dos 70 anos. Por sua obra, foi escolhida para a Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás e a Academia Goiânia de Letras. Ganhou o Prêmio Juca Pato da União Brasileira dos Escritores e foi agraciada com o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Sentidos na trilha: sons e cheiros

Árvore em Postura de Dança/Crédito: Rose Faria (2022)

Caminhar pelo Parque Olhos D’Água na Asa Norte pode ser trivial para os que lá vão todos os dias para seus exercícios rotineiros. Para nós hoje (4 de dezembro de 2022), um grupo de 13 caminhantes, foi uma porta para a magia de experimentar os serviços que a natureza nos presta se cuidamos e se nos imergirmos nela.

Caminhantes do Cerrado (CdC) realizou uma caminhada de acolhimento ação singular do grupo especializado em Caminhadas de Longo Curso no Distrito Federal e envolvido com os trabalhos da Rede Brasileira de Trilhas, cujo sonho é unir o Brasil de norte a sul e de leste a oeste em caminhos transitáveis a pé. Conhecer o país caminhando em grupos expressa esse sonho.

Pois bem, nossa aventura em trilha de parques urbanos de Brasília (DF), sob a condução de Rose Faria, foi muito além do caminhar e do acolher iniciantes. Fomos chamados a vivenciar nossos sentidos. Paramos para sentir o cheiro da mata, do cerrado, para conhecer flores e árvores diferentes e para ouvir o silêncio da natureza. No curto tempo em que andamos em silêncio observamos calmamente um gambá por dentre a mata e duas araras em voo sobre a copa das árvores, para além das galinhas da angola tão tradicionais no Olhos D’Água. Também fomos chamados por Rose para nos desafiar e caminhar de olhos fechados por um pequeno trecho plano. Deu insegurança, afinal para onde e por onde eu estava indo? Para uma primeira vez, meus olhos ficaram semicerrados.

No trajeto para o Pier Norte, nos deparamos com outra paisagem urbana: as moradias em barracas de plástico no gramado entre a L2 e a L4 Norte. De longe, vimos a estrutura de residência de quatro ou cinco famílias que dividem o território. Varal de roupa para secar as peças penduradas como camisas e calças, filtro de barro para água potável, material de reciclagem para gerar renda, fogão a lenha ao estilo de lata de tinta de 18 litros, e um homem de meia idade, de cabelos pretos, sentado tomando café. Na orla do Lago Paranoá, caminhando sobre o tablado do Pier da Asa Norte nos encontramos com a madeira necessitando de manutenção e um carrinho de supermercado tão enferrujado que deduzimos que estava ali ou fora retirado do lixo do Lago há muitos, muitos anos.

Os 12 mil passos em média que fizemos, numa manhã prá lá de revigorante, deixaram em todos nós a vontade de caminhar pela orla do Lago Paranoá, ainda que haja pontos de obstrução, e também de ouvir mais chorinho em roda de música, que estava em curso na entrada principal do Parque quando regressamos. Eu não pude ficar. Mas, quem ficou adorou!

Esta crônica de caminhante também está publicada no website do CdC.